Tuesday, March 18, 2008

A Salvo Contigo

  A silhueta dela debate-se contra o crepúsculo. Os seus cabelos negros, perfeitos, imaculados, permanecem imunes à brisa suave. Vejo-a assim, contra a luz, os reflexos dourados desenhando um kimono de seda, rosado, repleto de motivos florais vivos e sugestivos. É como se eu conseguisse cheirar pólen trazido pelas carícias do vento. A sua arma é um guarda-chuva, leve, suave, transparente, delicado e sedutor. Dir-se-ia que são um só.

 Remo sobre as ruínas da civilização, sobre a glória de outrora. Sempre remei, é o que eu faço, o meu dom. O meu pai uma vez disse-me que eu iria remar pelo mundo fora. Acertou. Esta nossa pequena embarcação de madeira, de aparência frágil, carrega-nos robustamente por entre pedaços dos séculos passados, cidades inteiras afogadas num cenário apocalíptico digno de Noé e da sua Arca. Não temos porto nem companhia. Sou só eu, ela e as gaivotas.

 O Sol começa a desaparecer por entre o aço de antigamente. A ilusão morre. Os seus belos trajes, o seu cabelo imaculado, a sua forma, tudo muda. No entanto, esta mulher que substituiu a Dama Dourada leva-me sempre a uma qualquer tragédia moderna. Talvez seja do seu fato amarrotado, dos seus cabelos longos e selvagens, da sua expressão apática e austera, da sua elegância esfomeada, do seu guarda-chuva dobrado. Dir-se-ia que, a qualquer momento, uma adaga guiada pelas suas próprias mãos lhe virá roubar a vida, vertendo uma agonia Shakesperiana sobre os seus trajes.

 Já não falamos há semanas. Ambos sabemos porquê: ela é a Dama Dourada e eu sou o homem que rema. Ela chora em silêncio e eu pesco. Ela grita para as gaivotas e eu durmo. Ela trás o mundo às costas e eu só a levo a ela. Mas ambos perguntamo-nos a toda a hora: Poderíamos existir um sem o outro, eu sem ela, ela sem mim? Poderia eu resistir à chuva sem o seu amparo? Poderia ela atravessar o mar sem o meu dom? Não sabemos responder, mas sabemos as respostas. Talvez seja por isso que eu reme e ela chore.

 A noite chega, inevitavelmente, abafando as formas daquela mulher uma vez mais. Continuo a remar. A escuridão não me assusta. Consigo adivinhar a sua silhueta sombria sob os raios lunares, erecta e vigilante, insone. Continuo a remar. A cabeça não me pesa, não tenho sono. Os meus braços não cedem, a fome não me sufoca. Continuo a remar. Eu e ela, ela e eu. Fustigado pela chuva, continuarei a remar. Queimado pelo Sol, continuarei a remar. Por nós. Por mim. Por ela.

 Acho que vou morrer assim. Eu e ela - as gaivotas - ela e eu. A Dama Dourada diz-me para não desistir com um simples olhar; Continuarei a remar, pelo crepúsculo eterno, pela suavidade das águas, sobre os dias de outrora, à espera do próximo amanhecer. Fraco ou febril. Derrotado ou vencedor. A luz virá novamente; salvar-nos-emos quando o menos esperarmos. Conseguiremos escapar ao fim.

 Por isso é que as vozes nos cantam

 "Subnutrido, murmura"

 Dama Dourada. Minha silhueta perfeita recortada pelo fogo da tarde. Milagre!, como o sorriso que desfaz o teu trágico nó da gravata, limpa as imperfeições do teu fato, repara o teu guarda-chuva, abrilhanta o teu cabelo, me alegra a alma mais do que chegar onde chegamos! O teu semblante subitamente leve traz-me vómitos de felicidade!

 "Milagre"

 fomos nós os dois, vogando noite e dia, amaldiçoados pelo tempo e pelo mar sem fim. Foste tu, que me deste forças para continuar. O meu Dom; remar. E as mãos que me retiram o remo como quem acaricia um recém-nascido, as mãos que me salvam desta viagem sem fim, elas sabem o milagre que fomos, Eu e Tu e o Crepúsculo e as Gaivotas. Estas mãos...elas lembram-me, elas dizem-me, o quanto eu estou

 "Vivo"

 como tu estiveste para mim; viva a cada segundo, olhando em frente, chorando em silêncio, sorrindo qual perfeita ilusão aquando do mundo que se suicidou, sendo como eu gostava de ter sido enquanto remava remar. E agora aqui estamos nós, juntos, eu e tu, eternamente

 "A salvo"

 contigo.

2 Comments:

Blogger Per Sonare Into Legere said...

Cada um lê e leva para onde quer. Eu sonhei que estava um pouco de mim no teu belo texto. Já sabes o porquê!

continuo a amar-te, tanto que me dá vómitos :D

8:15 AM  
Blogger Kameo said...

gostei mm mt deste, mm mt.

8:51 PM  

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