Wednesday, December 12, 2007

Sinto a tua falta

Tinha-me esquecido do quão sexy ficavas a tocar piano em roupa interior. Tinha-se esquecido de como adoravas essa tua camisa branca e da forma especial, quase indecorosa, como a abotoavas. Tinha-me esquecido da gravata preta e do eterno cigarro entre os lábios, mal aproveitado entre pausas e pautas. Tinha-me esquecido do quanto amavas tocar após o banho, pingando água fria nas teclas por não secares os teus negros cabelos.

Desgraça a minha.

E tu, sedutora, derramas nocturnos sobre a minha alma enternecida, qual artista possuída pela necessidade de ferir através da sua eterna melancolia. Os meus passos perderam-se no soalho, guiados pela vontade das tuas mãos a deslizar nas teclas.

Então o meu coração pára; sem aviso, começas um Rach imperfeito, doloroso em todos os sentidos, um coup de grâce misericordioso, algo excessivamente belo para esse instrumento velho, decadente e delicioso. Sinto-me a cair, esmagado por uma viagem no tempo numa página amarelecida, respirando passados limados pela memória, onde o mundo eram tons sépia de perfeição e êxtase primaveril. "Estamos no Outono" relembrar-me-ias, possivelmente rouca devido a um qualquer factor climático. E eu discordaria, porque me falta a imaginação necessária para compreender essa tua metáfora. "Nada mais resta do Outono" protestaria "O ano acabou e nenhum se lhe seguiu".
Agarro-me a esse pensamento; saio do transe.

- Vim buscar...coisas - ouço-me murmurar, qual vagabundo fazendo-se passar por arauto real, seco, rude, facilmente adiado por um clímax sonoro. Súbita e fugaz, aproveitas o fim do teu cigarro, pondo termo ao concerto. Quando recomeças, já tens novo tema para o massacre. Requiem. Esse teu humor desgraçado...
- Fantasmas - comentas - Fantasmas sacanas. Dir-se-ia que estavas a amaldiçoar o tempo.

Passo por ti.
E então congelo, numa prisão semelhante à interminável expiração. Quase choro, e a culpada és tu, a tua fragilidade, o retrato de uma tragédia caseira, um acidente de viação que compra leite todas as semanas, os destroços de um avião, um vinil inestimável partido ao meio. Tu; a deusa.

- Vai-te foder - acrescentas, subtilmente histérica, acendendo outro cigarro. Os teus dedos esboçam melodias incompletas, umas a seguir às outras, a tua tosse faz lembrar filmes com personagens tuberculosas, talvez o moulin rouge, e eu soluço, quase a chorar - Vai-te foder, já não és parte de mim - o sopro quase não é audível, mas as lágrimas que baptizam as teclas parecem demasiado reais.

A culpa não foi minha. Tu sabes isso. E então o grito surge, furioso e cru.
- Tu é que disseste que era a única forma!

O banco cai ao chão. Estás de pé, colérica, mãos perfeitas a tremer. O cigarro foi-se, o piano toca sozinho, a mobília restante é pó.

- Querida - sorris, parecendo lunática com esse teu decote de fazer corar os anjos; oh, as noites que passaram a manhãs, o nosso amor! - estás morta.

Desfazes tudo.
O mundo reduz-se a calor molhado, a uma banheira cheia, a dois corpos sobrepostos, a água enchendo pulmões.
Resta apenas inércia, uma inércia incontrariável
Sinto a tua falta.

2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

a solidão de adão antes da criação de eva devia ser terrível

8:16 AM  
Anonymous Anonymous said...

A tua escrita é comovente e apixonante. Nem quem acha que escreve com profundidade ao dizer isto é tão profundo como tu. Está nas tuas entranhas amor. Está no teu sangue e no teu doce cheiro natural.

Li

1:53 AM  

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