Monday, December 31, 2007

Cólera

 ...e eu grito de raiva porque a mudança é uma promessa tão falsa quanto aquela que o novo ano diz trazer; fácil e falaciosa, como sempre, um sopro que apela à esperança. E eu, tolo e inocente como não me julgam, sigo o doce odor de uma espécie de ninfa, um licor que inebria e cura.

 Claro que o preço é sempre o mesmo; uma cura por uma chaga. E, obviamente, so much pain drives a man under a train. Assim é mais bonito: as curas começam a ser gradualmente menos eficazes, e as chagas sempre dolorosas e fundas, pelo que o sangue acaba por jorrar de diferentes fontes e com diferentes intensidades. No fundo, a pessoa transforma-se num altar de marfim maculado pelo vermelho, à vista de todos e a todos disponível para alterar.

 Obrigado, doces bichas, eternamente esporradas, por me relembrarem o quanto eu vos desejo mortas no chão dos vossos haréms, com o vosso sangue branco de tanto engolirem, alguns de vós brindando o mundo dos vivos com herpes e sífilis e sida e outras ISTs maravilhosas e de manifestação diversa. Obrigado pelo toque efémero de lábios e troca rápida de língua, espero bem ter evitado qualquer doença embaraçosa ou embaraçante (ensinem-me lá o vosso português visceral, que eu nem o meu sei). Talvez o álcool no meu sangue tenha purificado a vossa promessa de pilas. Razias extenuantes são tudo o que eu desejo.

 Deixem chorar quem sente. Deve ser essa a minha maldição; sentir por vocês tudo o que não envolve ânus a tragar um pénis lubrificado e, esperemos, protegido por um preservativo ou engolir até ao esófago esses orgãos sexuais masculinos, capacidade essa trazida quer por deus, quer por horas de treino com bananas ou outros phalos.

 Deixem-me em paz. Tiros nos vossos cornos, que vocês transmitem entre vós como quem come bacalhau na consoada.
 

Friday, December 14, 2007

Círculo

Fui o teu amor
Fui aquela com quem sonhas
Fui beijo repentino e calr
Fui quem eternamente amas
Fui trabalhadora empenhada
Fui quem dá sem esperar receber
Fui mulher dedicada
Fui suporte para a dor que estás a sofrer
Sou desperdício ambulante
Sou desempregada estéril em depressão
Sou fraca amante
Sou alvo fácil para a tua mão
Já nem sei o que serei
A vida são lágrimas e álcool e berros
Não sei se alguma vez me libertarei
As tuas palavras queimam e sangram os meus erros
Sou estilhaço
Sou sorriso e olho pisado
Sou fracasso
Sou dependência e medo
Sou grito mudo
Ajudem-me

Wednesday, December 12, 2007

Sinto a tua falta

Tinha-me esquecido do quão sexy ficavas a tocar piano em roupa interior. Tinha-se esquecido de como adoravas essa tua camisa branca e da forma especial, quase indecorosa, como a abotoavas. Tinha-me esquecido da gravata preta e do eterno cigarro entre os lábios, mal aproveitado entre pausas e pautas. Tinha-me esquecido do quanto amavas tocar após o banho, pingando água fria nas teclas por não secares os teus negros cabelos.

Desgraça a minha.

E tu, sedutora, derramas nocturnos sobre a minha alma enternecida, qual artista possuída pela necessidade de ferir através da sua eterna melancolia. Os meus passos perderam-se no soalho, guiados pela vontade das tuas mãos a deslizar nas teclas.

Então o meu coração pára; sem aviso, começas um Rach imperfeito, doloroso em todos os sentidos, um coup de grâce misericordioso, algo excessivamente belo para esse instrumento velho, decadente e delicioso. Sinto-me a cair, esmagado por uma viagem no tempo numa página amarelecida, respirando passados limados pela memória, onde o mundo eram tons sépia de perfeição e êxtase primaveril. "Estamos no Outono" relembrar-me-ias, possivelmente rouca devido a um qualquer factor climático. E eu discordaria, porque me falta a imaginação necessária para compreender essa tua metáfora. "Nada mais resta do Outono" protestaria "O ano acabou e nenhum se lhe seguiu".
Agarro-me a esse pensamento; saio do transe.

- Vim buscar...coisas - ouço-me murmurar, qual vagabundo fazendo-se passar por arauto real, seco, rude, facilmente adiado por um clímax sonoro. Súbita e fugaz, aproveitas o fim do teu cigarro, pondo termo ao concerto. Quando recomeças, já tens novo tema para o massacre. Requiem. Esse teu humor desgraçado...
- Fantasmas - comentas - Fantasmas sacanas. Dir-se-ia que estavas a amaldiçoar o tempo.

Passo por ti.
E então congelo, numa prisão semelhante à interminável expiração. Quase choro, e a culpada és tu, a tua fragilidade, o retrato de uma tragédia caseira, um acidente de viação que compra leite todas as semanas, os destroços de um avião, um vinil inestimável partido ao meio. Tu; a deusa.

- Vai-te foder - acrescentas, subtilmente histérica, acendendo outro cigarro. Os teus dedos esboçam melodias incompletas, umas a seguir às outras, a tua tosse faz lembrar filmes com personagens tuberculosas, talvez o moulin rouge, e eu soluço, quase a chorar - Vai-te foder, já não és parte de mim - o sopro quase não é audível, mas as lágrimas que baptizam as teclas parecem demasiado reais.

A culpa não foi minha. Tu sabes isso. E então o grito surge, furioso e cru.
- Tu é que disseste que era a única forma!

O banco cai ao chão. Estás de pé, colérica, mãos perfeitas a tremer. O cigarro foi-se, o piano toca sozinho, a mobília restante é pó.

- Querida - sorris, parecendo lunática com esse teu decote de fazer corar os anjos; oh, as noites que passaram a manhãs, o nosso amor! - estás morta.

Desfazes tudo.
O mundo reduz-se a calor molhado, a uma banheira cheia, a dois corpos sobrepostos, a água enchendo pulmões.
Resta apenas inércia, uma inércia incontrariável
Sinto a tua falta.